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A escritora brasileira Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor e primeira mulher negra eleita para a Academia Brasileira de Letras, esteve na segunda-feira, 17 de novembro, na Sala Mediateca António Correia e Silva, na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV), para um encontro com estudantes e docentes sobre literatura, memória e diáspora africana.

Na sua primeira visita a África, Ana Maria Gonçalves descreveu o momento como “muito especial”, sublinhando a emoção de ver “o mar daqui para lá”, pensando nas pessoas que fizeram a travessia forçada para o Brasil “geralmente para nunca mais voltar”. Falou de um sentimento de pertença “a parentes que sabemos que temos, mas que a história separou por gerações”, alertando para a necessidade de evitar visões romantizadas de “África” e reconhecer as pluralidades das “Áfricas”.

Um dos pontos fortes da conversa foi a questão da identidade e da negritude no Brasil. Filha de mãe negra e pai branco, a autora explicou como, historicamente, pessoas com o seu tom de pele evitavam identificar-se como negras para fugir ao racismo. Recordou o processo político e estatístico que juntou “pretos e pardos” na categoria “negros”, hoje maioria da população brasileira, e afirmou: “Politicamente, socialmente e culturalmente, é muito importante estar no mundo como mulher negra.” Um defeito de cor, disse, foi o livro que escreveu para compreender a sua ancestralidade quando não encontrou essa história nos livros existentes.

Ana Maria Gonçalves contou ainda como deixou uma carreira bem-sucedida na publicidade, em São Paulo, depois de fazer um exercício radical: escrever o próprio obituário e perceber que aquela não era a vida que queria deixar para o mundo. A literatura surgiu, então, como caminho, apoiada numa relação antiga com a leitura, construída numa família simples em Minas Gerais, onde os livros eram comprados com esforço e partilhados em voz alta.

Sobre Um defeito de cor, relatou o “convite” indireto de Jorge Amado, ao desafiar alguém a escrever sobre a revolta dos Malês, escravizados muçulmanos que protagonizaram uma insurreição em Salvador em 1835. A partir daí, mudou-se para a Bahia, dedicou-se durante anos à pesquisa em arquivos e fontes primárias e construiu a história de Kehinde, personagem que atravessa a escravidão, o exílio, o retorno e a luta pela memória. Para a autora, dar nome, rosto e voz a figuras como Kehinde ou Luísa Mahin é uma forma de reparação simbólica: “Trata-se de devolver humanidade a quem foi desumanizado.”

A escritora abordou também a sua recente entrada na Academia Brasileira de Letras, aos 7 de novembro, destacando o peso de ser a primeira mulher negra em 128 anos de história da instituição. Disse que ocupa “uma cadeira coletiva”, em nome de todas as pessoas que nunca tiveram acesso a esses espaços, e assumiu falar “Pretuguês”, conceito de Lélia Gonzalez para o português marcado por línguas africanas.

No final, respondeu a perguntas sobre crítica literária, adaptação para samba-enredo e projetos futuros, incluindo um conto juvenil em coautoria com a irmã. A sessão encerrou com a leitura de um poema escrito pela moderadora, Karina Gomes, inspirado na passagem da autora por Cabo Verde, seguida de um momento de proximidade com o público, entre fotografias, conversas e autógrafos.

 

Ana Maria Gonçalves na Uni-CV fala de literatura, memória e diáspora negra
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